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domingo, 4 de outubro de 2020

Búzios é o exemplo vivo, ou morto, da ocupação que Ricardo Salles planeja



Resorts sobre os manguezais, o lucro rápido de uma meia dúzia em troca do prejuízo eterno de milhões, ou seja, terra arrasada

Eu devia ter uns dez anos quando aceitei passar um feriadão acampada com tios e primos em Búzios. Búzios, na época, ainda era Búzios.

Metemos duas barracas da Mesbla na Kombi do meu pai, junto com a tralha, que incluía uma privada de madeira construída pelo meu avô marceneiro, para que mantivéssemos as comodidades do lar. O acampamento cigano foi erguido no canto de uma João Fernandes ainda selvagem.

Exaustos da viagem, arrochamos a boca de fogão num botijão, a fim de cozinhar o macarrão com Pomarola da janta. Não deu um minuto, o barulho agudo do vazamento resultou num cheiro insuportável de gás. “Vai explodir!”, gritou meu tio, enquanto tentava evitar a tragédia.

Passado o susto, engolimos a gororoba, lavando pratos e dentes na espuma da arrebentação. Não lembro o que fizemos com os sacos plásticos das necessidades, ajustados ao trono do meu avô. Temo confessar que os jogamos no mato, como se o mato fosse dar cabo deles.

Eu me lembro, sim, de cair amontoada no quartinho de tela num calor de rachar e de ser acordada por um primo que enchera a cara e acabou vomitando nos pés dos ocupantes da sala do château de náilon.

Assim que o dia raiou, carente de paz e privacidade, inflei o bote de plástico e passei a sexta, o sábado e o domingo a boiar na marola, sem blusa, chapéu ou filtro. Ignorávamos o risco de melanoma naqueles idos de 1975. No caminho de volta, notei o contraste entre o roxo da pele e o branco da marca do biquíni. A queimadura levaria um mês para sarar.

Trauma de infância, nunca mais acampei e nem senti falta de acampar.

Eu levaria duas décadas para retornar à Armação dos Búzios. Dessa vez, nada de farofa. O pai de um namorado possuía uma casa linda, no centro da Ferradura, cujo jardim terminava num muro sobre a areia. A maré alta engolia a beira-mar e me pareceu estranho que uma praia pública pudesse ser loteada de maneira tão privée.

Pela manhã, despertei com o roncar das lanchas.

Não só a areia da Ferradura fora privatizada, como o espelho d’água liberado para todo o tipo de esportes aquáticos. Banana boats, motos aquáticas e embarcações variadas zanzavam como moscas no plácido oceano, ameaçando banhistas, afugentando peixes e arruinando o que Deus criara.

No apagar das luzes do segundo milênio, os dois penhascos que fecham a entrada da exuberante enseada ainda restavam intactos, mas os grandes resorts já negociavam as encostas recobertas de vegetação nativa, animais rasteiros e ninhos de pássaros.

Eu levaria outros 20 anos para retornar ao Éden de Brigitte Bardot. Foi em setembro, agora, no meu aniversário de 55 anos.

A engarrafada via de mão dupla que dá acesso à península sempre foi horrenda, mas piorou com a idade. O comércio de casas feias quintuplicou o número de restaurantes, supermercados, postos de gasolina e agências de turismo. Um não acabar de néons, reclames e outdoors vendendo o que não mais existe.

Minto.

A praia dos Ossos ainda guarda a memória do antigo encanto. A igrejinha do século 18, protetora dos baleeiros, continua lá, mas o resto foi entregue à especulação imobiliária.

Condomínios inteiros avançam sobre as demais praias. Boates bregas, pistas de minikart e pombais batizados de hotéis, onde antes respiravam dunas. Quase nenhum vestígio da paisagem agreste.

A praia da Tartaruga foi tomada por botecões estilo favela. Enormes barracas de compensado e concreto, com mesas que se alastram em direção ao mar. Um festival de latas de cerveja, garrafas, copos de plástico e guimbas meio fumadas.

Búzios é o exemplo vivo, ou morto, da ocupação predatória que Ricardo Salles, o antiministro do Meio Ambiente, planeja para o que sobrou do Brasil.

Resorts com piscinas de cloro sobre os manguezais que alimentam a vida marinha e a nossa. O lucro rápido de uma meia dúzia, em troca do prejuízo eterno de milhões.

Extrativismo. Queima de riquezas irrecuperáveis. Terra arrasada.

Minha família jamais deveria ter acampado em João Fernandes; o pai do meu namorado não poderia ter fincado sua casa na areia da Ferradura e nem as malocas-bares destruído a beleza da Tartaruga.

Você pode desculpar os adultos da década de 1970 por não besuntarem as crianças com filtro solar. E perdoar a falta de consciência ecológica e planejamento urbanístico dos anos 1980 e até 1990.

Em 2020, é crime! É crime, Ricardo Salles. Minha solidariedade à juíza Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que tentou barrar essa boiada. Pena que durou pouco.

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