Luiz Gama (c. 1860)
Por Irapuã Santana
Publicado no caderno Estado da Arte - Jornal Estadão (21 de junho de 2020)
“Eu disse, uma vez, que a escravidão nacional nunca havia produzido um Terêncio, um Epitecto, ou sequer, um Spártaco. Há, agora, uma exceção a fazer: a escravidão, entre nós, produziu Luiz Gama, que teve muito de Terêncio, de Epitecto e de Spártaco”. [1]
Sílvio Romero
Uma criança negra livre é vendida para quitar uma dívida de jogo de seu pai, consegue a alforria, estuda Direito e consegue libertar mais de quinhentas pessoas escravizadas.
É roteiro de filme hollywoodiano, mas sua origem é real e bem brasileira. Ela começa em Salvador, Bahia, em 21 de junho de 1830, quando nasceu Luiz Gonzaga Pinto da Gama.
Jornalista, poeta, advogado e um ativista incansável na luta contra o regime escravocrata, Luiz Gama deveria estar entre as figuras mais conhecidas da história brasileira, como um dos maiores, senão o maior, símbolo dessa época. No entanto, apesar de um grande potencial de transmissão de sua mensagem à frente, diante da quantidade de documentos históricos à nossa disposição, bem como por se tratar de um passado relativamente recente, pouca gente conhece a história desse verdadeiro herói.
Assim, estas poucas linhas são uma singela tentativa de fazer justiça à memória desse grande personagem brasileiro.
Filho de Luiza Mahin, uma negra africana livre, com um fidalgo de origem portuguesa de uma das principais famílias baianas, cujo nome se desconhece, Luiz Gama, com apenas dez anos de idade foi vendido como escravo por seu pai.
Ao desembarcar no porto de Santos, subiu a serra – descalço e faminto – até Campinas. Para se ter uma ideia, o Google Maps, hoje em dia, coloca a distância entre as duas cidades como equivalente a 175 km, com, no mínimo, 37h de caminhada. Imagine isso em 1840, em condições precárias, no meio da mata fechada, para uma criança de apenas dez anos de idade.
Com dezessete anos, Gama conheceu um jovem rapaz que lhe ensinou a ler e escrever, bem como matemática e alguns conhecimentos humanistas. Aos dezoito, começou a reunir provas de que sua situação de escravizado era completamente ilegal, tendo ciência de que seu pai e sua mãe gozavam de ampla liberdade.
Pediu que seu então senhor lhe desse a alforria. Sem sucesso.
Luiz Gama, então, fugiu para São Paulo, na posse das provas de que nascera livre, quando passou a servir às forças armadas até 1854. Em 1856, foi nomeado escrevente da Secretaria de Polícia, onde se aproximou de José Bonifácio e iniciou seus estudos de Direito por sua própria conta.
A literatura serviu para Luiz Gama como passaporte para os círculos sociais mais altos, tendo como sua obra mais proeminente de poesia “As Primeiras Trovas Burlescas”, de 1859.
A poesia Quem Sou Eu?, popularmente chamada de Bodarrada, talvez seja uma das mais conhecidas das Primeiras trovas burlescas. Nela, Gama traça um autorretrato:
“Faço versos, não vate, digo muito disparate. Mas só rendo obediência à virtude, à inteligência: eis aqui o Getulino…”.
O nome “Bodarrada” vem da palavra “bode”, que, na gíria da época significa mulato, negro. Assim, Luiz Gama indagava:
“Se negro sou, ou sou bode, pouco importa. O que isto pode?”
E terminava sua poesia dizendo:
“Haja paz, haja alegria, folgue e brinque a bodaria. Cesse, pois, a matinada, porque tudo é Bodarrada!”. [2]
Em 1868, Gama foi expulso da polícia por ser considerado baderneiro, por conta de sua atuação junto ao Partido Liberal à época. Foi nesse ínterim que se consolidou a figura do ativista liberal abolicionista. Enquanto se preparava juridicamente sozinho, por ter sido rejeitado pelos colegas e professores de faculdade, escrevia para inúmeros jornais: O Diabo Coxo, O Cabrião, O Polichinelo, O Coaraci e, mais tarde, O Radical Paulistano, entre outros. Sob pseudônimos, tecia grandes críticas à sociedade escravagista e à política do regime monárquico.
Diabo Coxo (dez/1864), fundado por Gama e Angelo Agostini.
Dez anos depois da primeira edição das Primeiras trovas burlescas, o jornalista liberal tinha a audácia de jogar os refletores, de condenar a incompetência, a ignorância e a corrupção dos juízes da província, insolência que lhe valeu tanto perseguições políticas quanto notoriedade. Quer pelo humor, quer pela seriedade, as palavras de Luiz Gama deviam ter um peso insuportável para os doutores, alvos prediletos do julgamento por parte do insolente ex-escravo, ex-analfabeto e autodidata sem diploma, o que lhe conferia uma certa superioridade e, por que não dizer, uma indisfarçada autoestima.”[3]
Embora mereçam nota, o servidor público, o poeta e o jornalista formam apenas uma introdução do legado de Luiz Gama, enquanto advogado – apesar de apenas ter sido reconhecido como tal pela OAB somente cento e trinta e três anos após sua morte. Até então, atuava como rábula.
Luiz Gama utilizava toda sua formação moral e jurídica como instrumento de luta nos tribunais, na imprensa, nos parlatórios e onde mais sua voz pudesse ecoar pela vinda da sonhada liberdade a todos os escravizados.
A Lei Feijó, de 1831, foi muito invocada por nosso herói. Ela é conhecida por ser uma das grandes responsáveis pelo surgimento da expressão “pra inglês ver”. Ela declarava “livres todos os escravos vindos de fôra do Imperio” e impunha “penas aos importadores dos mesmos escravos”. No entanto, como não havia intenção de materialização desse objetivo, o tráfico negreiro continuou sem qualquer restrição.
Mas Luiz Gama, munido de provas de que a pessoa havia aportado no país após essa data, vinda da África, conseguia nos tribunais sua alforria, em vitórias magníficas. Uma das histórias mais contundentes e elucidativas de como atuava em seu cotidiano é a que segue:
………..
Entrou-lhe um dia, pelo escritório adentro, um negro que desejava libertar-se e que ia entregar-lhe o montante do pecúlio necessário para que Gama tratasse de alforriá-lo. Enquanto o preto expunha o seu caso, aparece o senhor, que por sinal era amigo do advogado. Estava visivelmente inquieto, triste, abatido. E entrando em explicações, pergunta ao negro por que pretende abandoná-lo, a ele que sempre lhe dera trato e carinho iguais aos de seus filhos.
– Por que queres deixar-me, abandonando o cativeiro de um homem bom como tenho sido, arriscando-te a seres infeliz quando estiveres sozinho pela vida?
O escravo não respondia. Não tinha o que reclamar, pois o amo fora sempre, mais que humano, solícito e bondoso. O senhor não se conformava com a atitude do escravo:
– Por que me abandonas? Que é que te falta lá em casa? Dize… fala…
– Falta-lhe – interveio Luiz Gama, dando uma palmada no ombro do preto – falta-lhe o direito de ser infeliz onde, quando e como queira!
E libertou o negro.[4]
…………………
Nosso personagem histórico variava seus argumentos das mais diversas formas possíveis para defender seus clientes. Uma fala que entrou para a eternidade e levou o real significado da liberdade para Luiz Gama ocorreu quando defendia um negro escravizado que havia matado seu senhor: Todo escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa.[5]
Foi com essas atuações que o ex-escravo conseguiu libertar mais de quinhentas pessoas escravizadas durante sua vida.
……………..
Em 24 de agosto de 1882, morre Luiz Gama. Conta-se que 10% da população de São Paulo esteve presente no seu velório e enterro. Infelizmente, apesar de seus grandes feitos, muito pouca informação sobre Luiz Gama é disseminada no Brasil.
Inscrito no livro dos heróis nacionais em 16 de janeiro de 2018, e apesar de ter sido nomeado o patrono da abolição da escravatura no Brasil na mesma data, não vemos uma minissérie, um filme, dificilmente uma peça em seu nome com sua vida.
Os livros de história nos colégios tratam o dia de hoje como uma data em que pessoas brancas concederam a liberdade a pessoas negras e apagam o fato de que personagens heroicos lutaram com suas vidas para que a sonhada liberdade chegasse a todos.
Em nossas mãos está a obra de Luiz Gama, uma pessoa que fez da sua vida um ensinamento, que dedicou a sua vida à causa abolicionista.
Nós temos o potencial de ser o seu legado, levando sua palavra adiante, não o deixando cair no esquecimento, em sua vivência e em sua mais forte essência. Temos o potencial de fazer isso ressignificando o 13 de maio, que deve ser entendido como uma data de lembranças das narrativas corretas, dos contos de quem passou por todas as etapas da vida se dedicando à liberdade e à igualdade de fato.
Um novo 13 de maio deve ser fundado no país, tendo como base a obra e o legado de Luiz Gonzaga Pinto da Gama.
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